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Avanço da China redesenha o mapa da indústria automotiva no Brasil

Avanço da China redesenha o mapa da indústria automotiva no Brasil

A parceria cria a Renault-Geely do Brasil, que produzirá motores híbridos e elétricos no Complexo Ayrton Senna, em São José dos Pinhais, e abre a rede de 250 concessionárias da Renault para veículos das duas marcas.

A operação é a face mais visível de um fenômeno que vem redesenhando o setor automotivo brasileiro — e mundial. Em vez de tentar conter a influência da China, algumas montadoras e governos estão optando por incorporá-la. O país asiático passou de competidor periférico a parceiro indispensável, dono da escala e da tecnologia que faltam aos ocidentais.

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Nos últimos anos, o Brasil se tornou terreno fértil para esse avanço. A ausência de barreiras comerciais robustas – muito menores do que as construídas pela Europa e pelos Estados Unidos – combinada à necessidade das montadoras chinesas expandirem seus mercados fez do mercado nacional, o sexto maior do mundo, um alvo.

Além disso, há fábricas parcial ou totalmente ociosas. Plantas que já foram da Ford e da Mercedes-Benz passaram a operar, respectivamente, sob o controle das chinesas BYD e GWM.

Para o consultor Cassio Pagliarini, da Bright Consulting, essa transformação é consequência direta da estrutura regulatória mais branda do que nos principais mercados e também da falta de alternativa competitiva. Ele observa que, com tarifas moderadas, o Brasil acabou “permitindo que o capital chinês ocupasse espaço” que outros investidores deixaram vazio.

“A gente fala em barreiras comerciais. Qual é a nossa barreira? 35%. Os Estados Unidos têm 100%, 150%. A Europa começa em 38%. E para trazer kit CKD para cá a tarifa é de 16%”, explica Pagliarini, em referência aos conjuntos de partes e peças trazidas desmontadas da China e montadas localmente. “As tarifas aqui são pequenas a ponto de ser viável pagar”.

A barreira mais branda tornou o Brasil um importante destino dos enormes navios abarrotados de carros elétricos fabricados na China. O gigante asiático precisa encontrar novos mercados para escoar sua produção, uma vez que o mercado interno já parece saturado.

Mas as chinesas não estão simplesmente despejando um excesso de carros aqui. Elas têm planos de longo prazo para o Brasil, e já têm investido nos últimos anos. Segundo dados compilados pelo Conselho Econômico Brasil-China, em 2024 as empresas chinesas destinaram US$ 575 milhões para a fabricação de carros por aqui, o que tornou o setor o terceiro mais investido por chineses no Brasil, só atrás da energia elétrica (US$ 1,43 bilhão) e do petróleo (US$ 1 bilhão).

As promessas de investimentos no Brasil feitas por BYD, Great Wall Motors (GWM), Leapmotor, Omoda/Jaecoo e GAC Motors, já somam mais de R$ 20 bilhões. Isso sem contar o negócio recente da Geely com a Renault, que não teve seus valores divulgados.

Hoje, ressalta Pagliarini, há empresas da China em todos os elos da cadeia, do powertrain (conjunto de componentes de um veículo responsáveis transmitir a potência do motor até as rodas) às baterias. “A China não é mais um país que copia aquilo que você faz. Hoje, ou você cede para elas ou você se associa a elas”, resume. “E está todo mundo está querendo se associar a elas”.

Pagliarini vê o movimento como parte de um redesenho mais amplo. “Dificilmente uma empresa ocidental vai ser capaz de explorar os mercados sem uma parceria com os chineses”, afirma. Para o consultor, as alianças se tornaram não apenas uma escolha estratégica, mas uma condição de sobrevivência diante da velocidade tecnológica da China.

O poder de escala da nova indústria

Os exemplos recentes comprovam essa lógica. A BYD investiu R$ 5,5 bilhões na fábrica de Camaçari (BA) onde pretende produzir 150 mil veículos por ano. A GWM, em Iracemápolis (SP), planeja aplicar R$ 10 bilhões até 2032, com uma segunda unidade já em estudo. Ambas receberam apoio local, mas a motivação principal foi o acesso rápido ao mercado.

A nova geração de marcas chinesas segue o mesmo roteiro. A Leapmotor, controlada em 20% pela Stellantis (dona de marcas como Fiat, Jeep e Peugeot), estreou no país com três SUVs eletrificados e 36 concessionárias. As chinesas Omoda e Jaecoo — pertencentes ao grupo Chery — começaram a vender seus modelos por aqui nos últimos meses, e têm planos de comercializar 30 mil carros por ano. A GAC Motors anunciou R$ 6 bilhões para montar uma fábrica e centro de P&D até 2026.

A leitura de Tavares: quando resistir é mais caro

Ex-CEO da Stellantis, o português Carlos Tavares, descreveu recentemente o que esse movimento significa para o Ocidente. Em entrevista ao Financial Times, reproduzida pela Folha de S.Paulo, ele afirmou que “as montadoras chinesas serão as salvadoras das fábricas e dos empregos europeus, em uma tomada gradual que irá acelerar o fim de alguns fabricantes ocidentais”.

Tavares advertiu que, em breve, a maioria das marcas europeias estará sob controle de grupos chineses. “No dia em que uma montadora ocidental estiver em sérias dificuldades, com fábricas à beira do fechamento e manifestações nas ruas, uma empresa chinesa virá e dirá: ‘eu assumo e mantenho os empregos’ — e será vista como salvadora.”

Antes de deixar o cargo, ele próprio selou a parceria com a Leapmotor, que ilustra essa dinâmica: uma empresa europeia com capital e distribuição global, unida a uma marca chinesa com produto e tecnologia prontos. É o mesmo modelo que agora se reproduz no Brasil com a Renault-Geely.

A fala de Tavares complementa o diagnóstico de Pagliarini. Ambos descrevem uma relação assimétrica na qual a inovação, o custo e a escala estão na China, enquanto o Ocidente mantém acesso a mercados e marcas históricas. A cooperação, portanto, não é gesto político, mas cálculo econômico, de ambos os lados do meridiano de Greenwich.

A tendência de cooperação entre fabricantes não se limita aos casos de ocidentais com chinesas. A americana General Motors e a coreana Hyundai anunciaram neste ano o desenvolvimento conjunto de cinco veículos elétricos e híbridos, com intercâmbio de tecnologias de propulsão, baterias e software de gerenciamento. O projeto busca reduzir custos e acelerar o tempo de desenvolvimento diante da pressão imposta pelas montadoras chinesas no mercado global.

O movimento reforça o diagnóstico de Carlos Tavares: resistir isoladamente tornou-se mais caro do que dividir tecnologia. A GM e a Hyundai, rivais históricas, agora seguem a mesma lógica das alianças entre Renault e Geely ou Stellantis e Leapmotor — uma estratégia de sobrevivência diante da mudança de eixo tecnológico para o Oriente.

O avanço das montadoras chinesas já reposiciona o Brasil dentro da cadeia global. O país ganha fábricas e empregos, mas a autonomia tecnológica é mínima.

O domínio chinês sobre baterias e semicondutores consolidou uma dependência estrutural. O Brasil fornece mercado e base de produção; a China, tecnologia e dinheiro. A Renault-Geely inaugura uma etapa em que as parcerias deixam de ter caráter tático e passam a ser estruturais.

Para as marcas ocidentais, essas alianças oferecem tempo — e talvez uma segunda chance — para acompanhar a transição energética. Para as chinesas, representam acesso facilitado a mercados e redes amplas de distribuição. O Brasil, nesse tabuleiro, é um dos pontos de encontro das duas trajetórias: um país que precisa reindustrializar-se e que não tem, sozinho, os recursos para fazê-lo.

A transição em curso, no entanto, não é abrupta. Como observa Cassio Pagliarini, a hibridização será o caminho dominante no Brasil pelos próximos anos, tanto por razões econômicas quanto de infraestrutura: “O elétrico puro ainda esbarra no custo alto [das baterias importadas] e na falta de rede de recarga. O híbrido é o passo natural porque permite algum conteúdo local [o powertrain a combustão] e não depende de uma revolução logística.”

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O resultado é um setor mais dinâmico, porém dependente. As fábricas voltaram a produzir, mas sob controle de parceiros estrangeiros; a tecnologia avançou, mas segue ancorada em Xangai, Shenzhen e Hangzhou.

Um caminho sem volta

A China dominou os pilares da nova economia do carro — bateria, software e escala — e o resto do mundo passou a ajustar-se.

O Brasil, com tradição de acolher capital externo, tornou-se parte desse novo eixo. O futuro do setor provavelmente dependerá menos da capacidade de concorrer e mais da disposição de se associar.

Como sintetizou Pagliarini, “o futuro do carro é chinês de alguma forma, inclusive do carro brasileiro.”

Caio Rocha

Sou Caio Rocha, redator especializado em Tecnologia da Informação, com formação em Ciência da Computação. Escrevo sobre inovação, segurança digital, software e tendências do setor. Minha missão é traduzir o universo tech em uma linguagem acessível, ajudando pessoas e empresas a entenderem e aproveitarem o poder da tecnologia no dia a dia.

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