×

‘Conforme fui fazendo sucesso, mais fui me sentindo fracassada’

'Conforme fui fazendo sucesso, mais fui me sentindo fracassada'

Milla Fernandez está sentada diante de um laptop, bem ao fundo do palco. O tec tec no teclado dá vazão a pensamentos — frases projetadas na parede — que antecipam para a plateia que esta é uma história sobre a morte. A morte de um futuro.

  • Perfil: Nome por trás de espetáculos premiados e longevos, Rodrigo Portella se firma como expoente na cena atual
  • Retrospectiva 2025: Ano no teatro teve plateias lotadas, veteranos de volta, reinado de monólogos e ‘wickedmania’

A atriz tinha 22 anos e um sem-número de expectativas profissionais — peças, novelas, séries, filmes, Broadway, Oscar — quando tomou emprestado o computador da irmã e se trancou no quarto de casa para realizar performances eróticas numa plataforma on-line de conteúdo adulto. Da meia-noite ao meio-dia, de frente para a câmera acoplada ao aparelho, despia peças de roupa e desnudava, com malícia, uma miríade de assuntos, nem sempre relacionados a sexo, para satisfazer os desejos de homens anônimos. A meta era “levantar uma rendinha extra” em meio à aridez de perspectivas na pandemia, em 2020. Mas o negócio decolou. E a glória na arte de seduzir e sensualizar rapidamente se tornou um fardo.

— Conforme fui fazendo sucesso com isso, mais fui me sentindo fracassada com relação às minhas escolhas de vida — repassa Milla.

A atriz Milla Fernandez — Foto: Alexandre Cassiano/Agência O Globo

A história — que impulsiona um constante “cabo de guerra comigo mesma”, como diz a artista — é a inspiração para “TIP (antes que me queimem eu mesma me atiro no fogo)”, espetáculo que encerra na sexta-feira (19) uma breve temporada no Teatro Firjan Sesi, no Centro do Rio, para retornar no dia 16 de janeiro no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Humaitá.

Dirigida por Rodrigo Portella — responsável por sucessos recentes, entre os quais o monólogo “O motociclista no globo da morte”, com Eduardo Moscovis, e a irreverente “(Um) ensaio sobre a cegueira”, com o Grupo Galpão —, a montagem vem sendo tratada por espectadores e pela crítica como uma das mais inventivas estreias desta temporada, já no apagar das luzes de 2025. O encontro da atriz e do diretor não é fortuito: eles são um casal desde 2020.

Entre o grande (e o pequeno) público, Milla Fernandez é um rosto ainda desconhecido. Enteada do ator Raul Gazolla, a quem considera sua única referência paterna (eles se chamam de pai e filha), a moça evitava a exposição da vida íntima em redes sociais e nunca escancarou o vínculo familiar com a figura famosa.

Raul Gazolla com as filhas (Milla, em pé) e a mulher — Foto: reprodução
Raul Gazolla com as filhas (Milla, em pé) e a mulher — Foto: reprodução

Não à toa, a busca por controlar sua imagem — e o anseio por corresponder à ideia de “pessoa admirável”, coisa que, a todo momento, rondava a cabeça da carioca, uma “aluna exemplar” na escola e na faculdade — veio por água abaixo depois de Milla se meter no tal universo das camgirls, como são chamadas as “modelos de webcam”. Dali em diante, tudo mudou.

À época, ela cultivava uma década de experiência no teatro. Graduara-se na CAL, tradicional escola de artes cênicas no Rio, após uma adolescência permeada por cursos e oficinas na área — e seguia, em modo contínuo, enfiando a cara nos estudos. Mas sempre batia na trave em testes e audições por papéis. Até que veio a pandemia, e a família passou a lidar com graves dificuldades para quitar boletos.

Sem emprego, Milla tentou abrir canal no YouTube, realizar traduções para sites voltados a free-lancers, dar aulas de inglês… Foi aí que a pornografia ofereceu um retorno financeiro efetivo e ágil. No primeiro mês, embolsou mais ou menos R$ 20 mil, valor que, depois, só aumentou. O pai e a mãe a apoiaram desde o início da empreitada. O marido (na época, ainda namorado), idem.

— Curiosamente, eu tive… (ela se interrompe). Vou chamar aqui de “sorte”. Tive sorte de ter o apoio da minha família. Eles confiam muito no meu discernimento, sabe? — conta ela, que permaneceu dois anos realizando um total de 500 apresentações eróticas em troca de “tips” (“gorjetas”, em inglês, daí o título da peça) e mantendo uma dupla identidade, em segredo de amigos.

A atriz Milla Fernandez — Foto: Alexandre Cassiano/Agência O Globo
A atriz Milla Fernandez — Foto: Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Em cena, ao recompor as minúcias de uma história delicada — embalada, muitas vezes, por momentos bizarros e, por que não?, bem-humorados —, a atriz toca em temáticas como o medo, o fracasso, a meritocracia. O que se vê, dentro e fora da ficção, é uma mulher em busca de si, sem negar as próprias fragilidades.

— Falo muito de coragem, mas tenho medo. Por mais que tenha feito tudo no ambiente “privado” da plataforma, era só dar “play” ali e, pronto!, minha imagem estava espalhada na internet. Ingenuamente, não sabia disso — rememora Milla, que enfrentou sérias questões de saúde mental. — Quanto mais o dinheiro entrava, mais eu ficava na merda. Até que resolvi me apropriar dessa história para contá-la do meu jeito. Não vou mais deixar que isso vire um tapa. E sabe de uma coisa? Não me arrependo. Esse trabalho me ajudou a desapegar da ideia de uma imagem imaculada. Entendi, de maneira muito dolorosa, que não dá para ser perfeita e que as coisas não vão ser como planejei para mim. E tudo bem, sabe?

Detalhes inusitados e ideia de série

A princípio, “TIP” foi gestada como série de TV. Os planos mudaram de rumo devido à maior dificuldade em tirar do papel uma produção audiovisual. Fato é que não faltam bons personagens e subtramas possíveis de serem desenvolvidos em vários capítulos.

O diretor de teatro Rodrigo Portella — Foto: Alê Catan/Divulgação
O diretor de teatro Rodrigo Portella — Foto: Alê Catan/Divulgação

Como ressalta Milla Fernandez, muita gente a contratava simplesmente para aplacar a solidão. No período em que atuou no mercado de sexo on-line, chegou a ser paga, e muitíssimo bem, para conversar sobre amenidades por cinco horas. Aliás, o que mais fazia era falar, falar, falar, falar, falar… Tudo diante de uma câmera que ficava sempre ligada, com strip-tease e nudez. Ou não.

— Levava uma coisa muito mais de entretenimento do lugar de atriz, sabe? Representava personagens, contava piadas, discorria sobre filosofia, psicologia… Era outro rolê — detalha ela, que bloqueou clientes brasileiros para minimizar os riscos de ser “descoberta” por alguém conhecido.

A dinâmica do ofício era a seguinte: numa live dentro do site, a atriz performava diante das câmeras enquanto os usuários interagiam por meio de um chat, abastecendo-a de gorjetas. O lance mudava de figura (e de preço) quando a apresentação se tornava particular, fechada a apenas um homem. Daí em diante, o cliente decidia se gostaria de também abrir a própria câmera ou não.

—Numa só noite, ela fazia o que eu ganhava em seis meses de trabalho como professor de teatro — relembra Rodrigo Portella. — Estávamos juntos há seis meses quando ela veio com a ideia de ser cam model. A essa altura do campeonato, vou dizer “não” para uma mulher linda, independente e forte? Foi aí que a ajudei a fazer o cenário do “setzinho” no quarto. O mais difícil, para mim, foi a consequência disso.

Por muito tempo, o casal viajou pela Europa enquanto ambos trabalhavam on-line — ele, dando aulas via Zoom; ela, sendo camgirl. Hoje, ainda chegam alguns “mimos” de clientes antigos na caixa de correio de Milla, em Barcelona, onde ela vive com Portella. Os presentes incluem celulares, pratos de comida, conjunto de facas, vídeos de medalhões de Hollywood contratados para enviar recados personalizados… Houve até quem já enviasse uma réplica do próprio pênis em silicone.

A atriz Milla Fernandez, atriz e dramaturga do monólogo "TIP (antes que me queimem eu mesma me atiro no fogo)" — Foto: Alê Catan/Divulgação
A atriz Milla Fernandez, atriz e dramaturga do monólogo “TIP (antes que me queimem eu mesma me atiro no fogo)” — Foto: Alê Catan/Divulgação

Passado um longo processo terapêutico — algo que incluiu a elaboração do próprio espetáculo —, Milla não nega que mantém contato com alguns clientes antigos, de maneira bem distanciada. E com cautela.

— Estabeleci relações com essas pessoas por mais de dois anos, sabendo detalhes da família, da infância, do trabalho, se estavam dormindo bem… De tudo mesmo! — relata. — E aí me pego pensando que não sei se nada é verdade. Entende? Isso é o mais louco.

Raul Gazolla, o padrasto que a criou como pai, afirmou, em entrevista à coluna Play, do GLOBO, que só assistiu à peça depois de confirmar, com Milla, que ela não ficava nua em cena. O ator se emocionou.

— Não conhecia os detalhes da história. É uma entrega impressionante, de muita verdade. Uma das coisas mais bonitas que já vi — diz. — A vida de cada um é a vida de cada um. Se alguém tiver com preconceito, eu vou entender que o problema é com a pessoa, e não com a minha filha.

Caio Rocha

Sou Caio Rocha, redator especializado em Tecnologia da Informação, com formação em Ciência da Computação. Escrevo sobre inovação, segurança digital, software e tendências do setor. Minha missão é traduzir o universo tech em uma linguagem acessível, ajudando pessoas e empresas a entenderem e aproveitarem o poder da tecnologia no dia a dia.

Publicar comentário